Um tempo atrás li uma frase que grudou na minha cabeça: “não basta não ser capacitista, é preciso ser anticapacitista. Isso significa dizer que a primeira coisa que necessitamos fazer é reconhecer que vivemos em um país capacitista”.
A frase foi dita pelo cientista social e membro do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia, Julian Simões, em entrevista para a Agência Brasil.
Quando eu li a frase do Julian, me questionei sobre seu conteúdo: “por que eu preciso lutar contra o capacitismo? Se eu não for capacitista, já não basta?”.
Pesquisando a respeito, descobri a resposta para os meus questionamentos e entendi que isso tem tudo a ver com as empresas brasileiras.
O capacitismo está enraizado na sociedade (e, provavelmente, na sua empresa)
Caso você não saiba:
- Capacitismo é uma forma de preconceito, uma discriminação de pessoas com deficiência (PCD). O influencer Ivan Baron, que tem paralisia cerebral e atua desde 2018 nas redes sociais defendendo a inclusão, explica em um vídeo que o capacitismo é uma forma de duvidar da capacidade, violentar e estereotipar PCD.
- Anticapacitista é um termo que se refere à luta contra o capacitismo.
De acordo com uma pesquisa, divulgada em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 17,2 milhões de PCD no Brasil. Isso corresponde a 8,4% da população.
A Lei nº 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão, é bem clara ao dizer que:
Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.”
Essa lei garante vários direitos das PCD em relação à saúde, trabalho, educação, transporte, entre outros.
O artigo 93 da Lei nº 8.213/91, conhecida como Lei de Cotas Para Deficientes, diz que “A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência”.
Agora, pense comigo: milhões de pessoas com deficiência vivem em nosso país. Existem diversas regras relacionadas a esse público. Mas mesmo assim, grande parte das empresas não tem como premissa criar conteúdos e experiências acessíveis.
Minha pergunta aqui é: por quê?
O cientista social Julian Simões pode ter a resposta. Ele diz que “tal como ocorre com o racismo, o sexismo e as discriminações contra a população LGBTQIA+, o capacitismo é estrutural na sociedade brasileira. Ele está arraigado em quase todas as nossas práticas cotidianas”.
E, como o capacitismo é estrutural, acaba sendo comum não incluirmos as pessoas com deficiência nas nossas produções, ações e experiências. Porque nós não pensamos nas PCD.
Ou pior: pensamos nelas como inferiores, não merecedoras de estarem nos mesmos espaços e terem as mesmas oportunidades que pessoas sem deficiência.
E, muitas vezes, não fazemos isso por maldade ou de forma consciente. Fazemos porque isso está enraizado na nossa cultura.
Quer um exemplo de situação na qual o capacitismo é propagado sem as pessoas sequer perceberem?
Talvez isso ocorra porque muitas pessoas e empresas presumem que sites e conteúdos digitais são automaticamente acessíveis. Mas não são.
Assim como um estabelecimento comercial precisa construir entradas e banheiros acessíveis para pessoas com deficiência, por exemplo, as empresas e produtores precisam fazer um movimento consciente e determinado para tornar seus conteúdos digitais acessíveis para todas as pessoas.
A Lei Brasileira de Inclusão, que citei acima, determina, inclusive, que é obrigatória a acessibilidade em sites da internet mantidos por empresas brasileiras ou órgãos do governo.
Mas, curiosamente, essa lei não prevê punições para quem a descumpre.
Pensando nisso, a PL 4238/21 foi criada e aprovada por uma comissão da Câmara dos Deputados em julho de 2022. Se for sancionada, a PL prevê punições como:
- Advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
- Multa diária, considerando-se o faturamento total da empresa;
- Suspensão do site por prazo determinado.
O ponto central é que apenas punições não bastam. É preciso haver conscientização das pessoas sobre o capacitismo. Por ele ser estrutural, está enterrado fundo na nossa sociedade, ações, falas e pensamentos.
Por isso, voltando para as perguntas que eu me fiz lá no início, aqui vão algumas respostas: não, só não ser capacitista não basta.
Não basta colocar legendas nos vídeos do seu site ou contratar pessoas com deficiência pra cumprir a lei.
É preciso ser anticapacitista. É preciso lutar contra o capacitismo para garantir que nossa sociedade deixe de tê-lo como algo normalizado. Só assim conseguiremos, de fato, não sermos capacitistas.
O que você perde quando sua empresa não cria sites, conteúdos e experiências com acessibilidade
Agora, vamos para o lado mais prático da coisa: você tem muito a perder se não for anticapacitista na sua empresa.
Se você não cria sites, conteúdos e experiências acessíveis, você perde 17,2 milhões de clientes em potencial (total de pessoas com deficiência no Brasil, segundo levantamento divulgado em 2022 pelo IBGE).
E muitos estudos apontam nessa direção.
Uma pesquisa feita pela empresa Click-Away Pound revelou que 69% das pessoas entrevistadas já abandonaram sites por falta de acessibilidade. Outras 86% disseram que, se as lojas online fossem acessíveis, gastariam mais.
Outro dado, esse da Purple Pound, mostrou que as empresas do Reino Unido perdem cerca de 2 bilhões de libras por mês ao ignorar as necessidades das pessoas com deficiência.
Além disso, o comportamento dos consumidores está mudando. Uma pesquisa do Snapchat destacou que 83% da Geração Z está buscando e priorizando ações que valorizem o bem coletivo. Outro artigo, esse do site Consumidor Moderno, afirma que os jovens têm tendência a buscarem produtos de marcas que possuem ética, sustentabilidade e transparência.
Ou seja: se a sua empresa ignora a responsabilidade social, passa uma imagem negativa para os consumidores, o que pode te fazer perder clientes e enfraquecer seu negócio.
Como ser anticapacitista e criar experiências digitais acessíveis
Comece pelo óbvio: dê visibilidade e espaço para as pessoas com deficiência. Ninguém melhor do que elas para contarem suas experiências e barreiras sociais enfrentadas diariamente.
Mas, além disso, existem atitudes que você, seus colaboradores e sua empresa podem tomar para contribuírem com a luta contra o capacitismo.
- Evite usar palavras ou termos como:
- Retardado (a)
- Aleijado (a)
- Dar uma de João sem braço
- Que mancada
- Está cego (a)?
- Está surdo (a)?
- Mais perdido que cego em tiroteio
- Começar com o pé direito
- Ao criar conteúdos para/sobre pessoas com deficiência, tenha como fonte pessoas com deficiência e escolha mídias adequadas para o público-alvo.
- Nunca divulgue a deficiência de uma pessoa a menos que ela tenha concordado com isso e que divulgar a informação seja relevante para o conteúdo que você está criando.
- Ao criar conteúdos, mostre a diversidade das pessoas com deficiência e mostre-as fazendo coisas do dia a dia, preenchendo vários papéis.
- Crie sites aplicando as melhores práticas de acessibilidade do WCAG 2.1 AA (conjunto de recomendações de acessibilidade desenvolvidas pela W3C, consórcio que define os padrões da internet em colaboração com pessoas e organizações em todo o mundo).
- Nunca use apenas cores para comunicar informações ou ações.
- Inclua legendas/descrições em imagens, gráficos e vídeos.
- Inclua audiodescrição em vídeos.
- Não presuma que você sabe do que o outro precisa.
- Não trate pessoas com deficiência como inferiores.
- Não trate pessoas com deficiência como extraordinárias ou heroicas.
- Peça feedbacks de pessoas com deficiência para continuar a melhorar.